terça-feira, 13 de outubro de 2020

o faz muito tempo havia as maravilhosas brincadeiras da infância. Não era preciso muita coisa bastava uma corda, uma bola, um pião, cinco pedrinhas, dois metros de elástico, bolas de gude... alguns meninos também faziam seus fantásticos carrinhos de rolimãs e suas pipas voadoras. Se não tivesse um giz; um pedaço de gesso ou um caco de telha eram suficientes para que imediatamente surgisse uma amarelinha ou as tocas do coelho na toca. E quem lembra das brincadeiras de garrafão, bandeirinha, doninha da calçada, anel, cadê o grilo? Tica-tica, 31 alerta, tá pronto seu lobo? Licença meu bom barquinho, as cantigas de roda e a ousada tô no poço?

Essas brincadeiras viabilizavam momentos significativos de trocas afetivas. As crianças ficavam muito tempo juntas e juntas aprenderam a olhar nos olhos, a contar com um amigo, a fazer comparações e escolhas, a abraçar, a dividir seus medos e angústias, a se desentender e depois fazer as pazes, a respeitar, a ouvir e aceitar o outro, a expressar seus sentimentos... aprenderam que podiam ser felizes!!!

Não quero afirmar que as brincadeiras de antigamente, eram um elixir do equilíbrio do corpo e da mente. E que todas as crianças daquele tempo se tornaram adultos fortes, seguros, bem resolvidos... quero somente sublinhar uma época na qual as coisas pareciam ser mais simples e a alegria mais presente.

Época onde as crianças gostavam de ficar juntas e de brincar. Uma época encantadora, cheia de sonhos e de imaginação.

Ressalto ainda que essas brincadeiras promoviam aquisições motoras, cognitivas e sócio-afetivas de grande importância.

NAS BRINCADEIRAS DE RODA ficavam todos em sintonia, de mãos dadas girando no mesmo sentido, cantando a mesma canção, numa harmonia plena. Naquele momento mágico, eram fortes e seguros – uma verdadeira equipe. Não era uma competição, não tinha um vencedor, um perdedor ou coisa parecida. Era o desejo de compartilhar com o outro um instante de prazer. Não havia solidão e nada os atingiria ali; estavam de mãos dadas e giravam para o mesmo lado. Às vezes iam à Espanha buscar os seus chapeus... Jogavam alguém na lata do lixo, mas se fossem um peixinho e soubessem nadar o tirava lá do fundo do mar. Atirava-se o pau no gato, mas ele não morria; penso que a paulada era segura, porque dona Chica ficava até admirada, mas acabava tudo bem com o pobre gatinho. E na senhora dona Cândida, as crianças eram filhas do rei e netas da rainha. Jó parecia ser um patrão legal, seus escravos tinham momentos de descontração, quando jogavam caxangá. E aquele que foi ao tororó beber água e não achou e encontrou uma bela morena e a deixou lá. 

Na ciranda cirandinha, o anel recebido se quebrou por que era de vidro e amor se acabou por que era pouco. Tudo estava justificado. A cantiga apareceu a Margarida, mostra determinação e busca de soluções diante de um problema. Quando se pergunta: - Onde está a Margarida? Surge a resposta, que não é possível vê-la porque o muro é muito alto. Mas isso não foi impedimento, uma solução surge: tirar as pedrinhas, uma a uma até conseguir encontrá-la e dizer, com muita alegria: - Apareceu a Margarida olê, olê, olá...

Quando brincavam de ESCONDE-ESCONDE, aquele que estava escondido se percebia através do outro; permaneciam diretamente ligados. Naquele momento um não existia sem o outro. Aqueles que estavam escondidos, precisavam ser sutis, tolerantes e avaliar qual a hora mais adequada para agir. Como também era necessário serem ágeis, terem capacidade estratégica, equilíbrio estático e dinâmico, a discriminação auditiva e visual eram de extrema importância; assim como a concentração e o silêncio eram imprescindíveis. Além do que, entravam em contato com a ansiedade de serem encontrados, descobertos, revelados. Aquele que procurava, vivia inicialmente a sensação de ser o caçador, era dele que todos sumiam. Ele estava sozinho contra todos, mas a cada desvendamento trazia, além do sentimento de vitória, um reencontro. Era preciso ficar bastante atento a qualquer movimento, a qualquer som. E enquanto esse reencontro não acontecia, vivia-se um clima de mistério.

E na CABRA-CEGA, experimentava-se uma entrega absoluta, um contato com o próprio interior, uma intensa confiança e a certeza de que apesar de estar só, na escuridão, estavam todos por perto, bem pertinho mesmo. Brincar de DONINHA DA CALÇADA era experimentar invadir o espaço alheio, todos sabiam quem era o dono da calçada, sabiam também que, ele não queria que ninguém a pisasse. Mas o desejo de inocentemente transgredir a vontade do outro, era emocionante.

E a fantástica brincadeira de BANDEIRINHA. Era necessário que os componentes de uma equipe resgatassem a bandeirinha, que estava locada no território dos adversários, sem serem tocados por eles. Conseguir isso era uma grande conquista. Era o momento de protegerem o próprio espaço e sua equipe e ao mesmo tempo tentar invadir o campo oponente.

A BOLA DE GUDE, exigia  foco, concentração, coordeanção óculo-manual... Os poderosos “tecos“, atropelavam as bilocas comuns. E o barulho que faziam ao se encontrarem, anunciava que o alvo foi atingido.

E pular de ELÁSTICO? seguindo as etapas estabelecidas, vencendo os desafios, ultrapassando os limites. Era o corpo em movimentos graciosos, tendo o elástico como um  obstáculo que, às vezes não poderia ser tocado e em outros momentos se entrelaçava ao corpo, numa coreografia harmônica.

BAMBOLÊ que envolvia e girava, girava... num  movimento coordenado, contínuo e gracioso.

Jogar QUEIMADA era fugir, defender e atacar. Quando atingidos, morria-se, mesmo assim continuava-se no jogo; isso diminuia a frustração.

E jogar AMARELINHA ? um espaço delimitado, riscado no chão, onde a regra era simples e clara. Esse espaço interno deveria ser pisado, explorado, mas suas linhas eram intocáveis. Era preciso ter equilíbrio dinâmico e estático. Era imprescindível ter limite, concentração e destreza. Nessa brincadeira, também se trabalhava o freio inibitório. Alguns pareciam verdadeiros gatos; rápidos, suaves e precisos.

PULAR CORDA, era ajustar o  próprio movimento ao movimento do outro, sem esquecer o compasso da música. Era perceber o tempo, o espaço e o som.  

Brincar de CINCO MARIAS era fascinante, sendo preciso somente cinco pedrinhas. Que eram manipuladas com destreza – hora subiam, hora eram lançadas ao chão; seguindo uma coreografia bem definida, bem marcada.

Quando se brincava de ANEL, se experimentava o toque do outro através das mãos. Era um toque suave.

Quantas aquisições: concentração, coordenação óculo-manual, equilíbrio dinâmico e estático, organização espacial, organização espaço-temporal, capacidade de fazer escolhas e de respeitar os limites, destreza, rapidez, determinação, companheirismo, solidariedade, contato corporal, musicalidade, saber lidar com a frustração, organização, planejamento, estratégia, seguir as regras estabelecidas, controle da ansiedade... tudo isso regado com alegria, mistério, e muito, muito calor humano. Eram felizes e sabiam disso.

Nas brincadeiras, o mais importante eram os amigos, não o brinquedo e se não tivesse nada pra brincar, era possível conversar, cantar e contar as famosas piadas do joaozinho, de papagaio e ria-se muito. Ficar sozinho em casa... nem pensar, só quando ficavam doentes. Gostavam de ficar juntos e juntos decidiam fazer qualquer coisa, escolhiam a brincadeira, separavam as equipes, definiam os papéis e seguiam as regras. Tudo sem muito estresse. Parecia que os conflitos eram resolvidos com mais tranquilidade. Às vezes ficavam de mal, mas a maravilhosa sensação de fazer as pazes, sinalizava o quanto era bom estar juntos. Quando ficavam de bem, havia uma frase não dita, mas que estava legendada no brilho dos olhos: que saudade senti de você, meu amigo. E a partir daí tudo seguia seu curso natural.

Com tantas experiências motoras vividas, as dificuldades psicomotoras, eram menos comuns. Até as letras eram mais legíveis, com um traçado mais firme, mais seguro. Penso que as dinâmicas das brincadeiras promoviam uma maior segurança.

As regras presentes e esse brincar em equipe, fomentavam o contato com limites claros, bem estabelecidos. É interessante ressaltar que, naquela época as crianças pareciam conseguir fazer seus deveres de casa com mais independência, nem sempre os pais podiam acompanhar. Da quinta série em diante, muitas vezes os pais nem sabiam o que os filhos estavam estudando.

Não dava para se sentir só e portanto, a ansiedade parecia ser diluída, a frustração mostrava-se mais branda, os medos eram encarados ou superados com maior facilidade. Naquela época havia muitos abraços, muitos olhares, mãos dadas, cantigas, palavras, sentimentos compartilhados, troca, cumplicidade... tudo isso ainda ajudava a previnir ou minimizar as possíveis depressões, fobias, manias...

Antigamente era assim...

 

 

Jemima Morais Veras


Obs.: Imagem ID:234743006

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